Wednesday, October 06, 2010

Onde você guarda seus olhos?

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca".
Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura.
"Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles...Tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral da catedral gótica."
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico.

Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse:
"Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".
Ver é muito complicado.
Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso e afirmou:
"A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê".
Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra".

Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.


O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.
Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver.
O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho".
Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram".
Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam...
Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras.
Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".
Por isso _porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver_ eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

Tuesday, September 14, 2010

Tentar


Tento fazer do pouco aparente, realidade suficiente
Para sobreviver à necessidade do obsoleto

Tento não ser tão crítico
Para não esquecer-me de quem sou quando o criticado for eu

Tento imaginar-me melhor e mais puro a partir de agora
Para que neste próximo segundo, meu agora seja mais feliz e mais sóbrio

Tento respeitar a ordem das coisas e dos outros
Para não ficar tentando entender o que não é de minha ordem

Tento não convencer o mundo a ceder às minhas verdades
O mundo muda, eu mudo e minhas verdades mudarão


Tento viver sem preocupar-me com a morte
Uma parte de mim nasce e outra morre a cada segundo, e isso é viver

Agir com amor é a tentativa mais capaz e jamais se restringe ao “quase”
Porque a intenção amorosa é uma vitória e, neste caso, tentar é conseguir


Victor Chaves da dupla Victor e Leo

Friday, August 27, 2010

(Re)início

Uai, é a mesma coisa... rs.
"Quando eu era pequeno lá em Minas, depois da janta, era bonito ver os campos de capim gordura ao longe, tapetes de veludo cor-de-rosa iluminados pelo sol que se punha. Na frente da casa havia um pastinho cujo capim os cavalos que por ali andavam soltos durante o dia mantinham sempre rente e bem podado. Meu pai punha uma cadeira de vime na porta, acendia o cachimbo e os homens da vizinhança se aproximavam, se acomodavam de cócoras no capim, alguns com as nádegas apoiadas no calcanhar da botina. Era a hora de um papo furado sem fim. O corpo e a alma estavam tranquilos. Não havia medo. Mal algum poderia acontecer."

(Rubem Alves - Concertos para o Corpo e Alma)

A visão do capim gordura, que mais parecia um veludo cobrindo a encosta dos morros, era uma festa para os olhos. Ainda menina, ficava admirando as ondas que o vento fazia. Era bom se perder naquele movimento. Sentia paz.
Esse blog foi criado para resgatar as lembranças da menina que vivia nas montanhas, num tempo em que não haviam medos, além daqueles criados pelas lendas que os mais velhos contavam. A menina cresceu e é feliz, seus olhos agora observam outras montanhas, mas seu coração ainda se aquece ao recordar aqueles momentos.
Também para registrar seus momentos e sentimentos, já adulta. E, por que não, guardar as flores, espinhos, poesias e conhecimentos que vai colhendo pelo caminho.

Vuelvo

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Demorou, mas... vuelvo.

Os três últimos desejos de Alexandre, o Grande.

Quando à beira da morte, Alexandre convocou os seus generais e relatou seus três últimos desejos:
1 - que seu caixão fosse transportado pelas mãos dos médicos da época;
2 - que fossem espalhados no caminho até seu túmulo os seus tesouros conquistados (prata, ouro, pedras preciosas...); e
3 - que suas duas mãos fossem deixadas balançando no ar, fora do caixão, à vista de todos.

Um dos seus generais, admirado com esses desejos insólitos, perguntou a Alexandre quais as razões.

Alexandre explicou:
1 - Quero que os mais iminentes médicos carreguem meu caixão para mostrar que eles NÃO têm poder de cura perante a morte;
2 - Quero que o chão seja coberto pelos meus tesouros para que as pessoas possam ver que os bens materiais aqui conquistados, aqui permanecem;
3 - Quero que minhas mãos balancem ao vento para que as pessoas possam ver que de mãos vazias viemos e de mãos vazias partimos.